
José Maria Moreira Campos (Senador Pompeu, 1914 – Fortaleza, 1994)
Não acredito que alguns amantes da Literatura Brasileira ainda não conhecem o Moreira Campos. Infelizmente a pouco reconhecimento dedicado a este escritor que é, na minha opinião, o melhor contista da literatura cearense, senão o melhor do Brasil. Mas não vejo nisso razão para não lê-lo, e até acho que o anonimato no qual ainda reside o contista Moreira Campos o torna um autor ainda mais interessante aos meus olhos.
Semana passada eu fui às Livrarias: Cultura e Fnac, os funcionários não conhecem este escritor e a livraria não tem se quer uma obra dele. Procurei em muitos Sebos, mas também não encontrei nada!
Meu primeiro contato com o Moreira Campos foi quando eu assistia o programa da TV Cultura: Contos da Meia Noite, a estética da sua escrita me despertou muito interesse em pesquisar mais sobre sua Obra, e descobri contos maravilhosos como : As Vozes do Morto, Os Doze Parafusos, Dizem que os Cães Vêem Coisas entre muitos outros...
Não acredito que alguns amantes da Literatura Brasileira ainda não conhecem o Moreira Campos. Infelizmente a pouco reconhecimento dedicado a este escritor que é, na minha opinião, o melhor contista da literatura cearense, senão o melhor do Brasil. Mas não vejo nisso razão para não lê-lo, e até acho que o anonimato no qual ainda reside o contista Moreira Campos o torna um autor ainda mais interessante aos meus olhos.
Semana passada eu fui às Livrarias: Cultura e Fnac, os funcionários não conhecem este escritor e a livraria não tem se quer uma obra dele. Procurei em muitos Sebos, mas também não encontrei nada!
Meu primeiro contato com o Moreira Campos foi quando eu assistia o programa da TV Cultura: Contos da Meia Noite, a estética da sua escrita me despertou muito interesse em pesquisar mais sobre sua Obra, e descobri contos maravilhosos como : As Vozes do Morto, Os Doze Parafusos, Dizem que os Cães Vêem Coisas entre muitos outros...
Aqui vai um dos Contos:
*
As Vozes do morto.
(1963)
*
É possível acreditar nas vozes do morto. Elas devem estar em tudo. Na maneira simplória de Seu Damião, na sua aquiescência, nos seus monólogos e no seu próprio declínio. Ele emagrece sob o enorme paletó caqui. Urina no quintal da sapataria e as formigas miúdas, infinidade delas, vêm sugar o açúcar nas bordas do líquido. Seu Damião toma regularmente uma pílula e bebe água no copo de madeira medicinal, que guarda na prateleira por trás das caixas de sapatos. Mas perde peso: a pele do rosto se desprega a papada. Dança dentro da roupa. Dança todo, por sestros também, que ele é simplório. Leva sempre as mãos à cabeça, escusando-se. Ou melhor, não sabe onde pôr as mãos grandes. Põe-nas na cabeça redonda (cabelo cortado à escovinha) ou as esfrega uma na outra, Parece traduzir nos seus trejeitos um permanente pedido de desculpas por tudo que fez e pelo que não fez. Perdão até de se ter casado com Dona Leonor, que, novinha (e não agora, aquela máscara de pó), não era para se ter dado a ele, um sapateiro de origem, impregnado pelo cheiro da sola, os dedos curtos e chatos grudados de verniz. Dona Leonor estudou em colégio de freiras, segundo ela mesma diz, sem propósito de diminuir o marido, Apenas uma alusão saudosa a outra época:
- A meninice da gente.
Somente isso, com os olhos grandes calmamente perdidos na distância. Ainda hoje experimenta o velho piano na sala, encimado pela toalhinha e pelo jarro de flores artificiais, onde já dormitam moscas, quietas, e reclama os seus dedos:
- Já não são os mesmos!
Tem um riso brando na máscara branca do rosto e tem também na sala de casa uns quadros seus, estudos a óleo natureza morta e Um pôr de sol.
Vem daí certamente, senão uma inibição, pelo menos aquela dúvida de Seu Damião diante da mulher. O jeito seu de, em presença de visitas ou pessoas mais importantes (como se não coubesse entre elas), não externar idéia de maior responsabilidade sem antes consultar Dona Leonor por cima dos seus óculos grossos de míope. Como que teme dizer inconveniência ou mesmo disparate, ele tão grosso! Mas Dona Leonor aprova. Então ele leva as mãos repetidamente à cabeça, olhando para o chão ou para os pés:
- Pois muito bem! Muito bem!
Ainda um dia desses, ao receber o casal inesperadamente ali na calçada, à noite, a visita de Dona Cristina, da casa em frente e mulher de Dr. Mário, que vinha para uma palavrinha ligeira (indagar se na sapataria tinha certo tipo de sandália), Seu Damião foi até precipitado. Procurou as chinelas debaixo da cadeira de vime, quase espatifando os óculos. Finalmente calçou um dos pés, e o mais que pôde foi proteger-se por trás da cadeira. E isso tudo porque estava de pijama, assim íntimo! Pedia desculpas, cobria-se e ainda tapava a braguilha com a mão sem necessidade:
- Ora!
- Está em casa, Seu Damião!
- Ora!
- Está em casa, Seu Damião!
- Ora!
E por isso mesmo, e por muitas coisas mais, não se pode a rigor conciliar Seu Damião com a morte do outro. Mas o fato é conhecido e ainda murmurado, apesar do tempo:
- Seu Damião já matou um.
- Sei.
- Por causa da mulher.
- Sei.
Evidentemente um desastre, que teve de fechar sua casa de negócio em Belém do Pará, sapataria de luxo, vindo para aqui, onde reabriu oficina modesta, mas limpa, pegada à sua casa: o bom arranjo das prateleiras, a cortina de gorgorão vermelho na porta do centro do escritório, E ali no balcão Seu Damião recebe a freguesia, surpreendido sempre por cima dos óculos grossos:
- Sei.
- Por causa da mulher.
- Sei.
Evidentemente um desastre, que teve de fechar sua casa de negócio em Belém do Pará, sapataria de luxo, vindo para aqui, onde reabriu oficina modesta, mas limpa, pegada à sua casa: o bom arranjo das prateleiras, a cortina de gorgorão vermelho na porta do centro do escritório, E ali no balcão Seu Damião recebe a freguesia, surpreendido sempre por cima dos óculos grossos:
- Ah!
Dona Leonor, empoada, funciona na registradora:
- O troco, minha filha.
É delicada.
Possível sem dúvida acreditar nas vozes do morto. Estarão presentes sobretudo nos monólogos de Seu Damião. Os trejeitos, o tique nervoso dos olhos, ajeitando os óculos, os repetidos gemidos, dar de ombros ou a rabiçaca brusca do pescoço. Particularmente enquanto toma a sua pílula. É como se conversasse com o próprio vidro de remédio:
Possível sem dúvida acreditar nas vozes do morto. Estarão presentes sobretudo nos monólogos de Seu Damião. Os trejeitos, o tique nervoso dos olhos, ajeitando os óculos, os repetidos gemidos, dar de ombros ou a rabiçaca brusca do pescoço. Particularmente enquanto toma a sua pílula. É como se conversasse com o próprio vidro de remédio:
- Ahn... ahn!
Essas vozes, para no fim admitir-se também a inutilidade de tudo, Dona Leonor continuou a ter amante. Uma preferência por rapazes, quando mais nova. Mas chegou a aceitar o chofer do ônibus, que faz ponto na esquina sob o grande tamarindo, Esse tinha bigode caprichado e usava costeletas. Escorava-se no tronco do tamarindo, em conversa com outros, os condutores. Dilatava tempo de partida. Dona Leonor, disfarçada, mãos para trás, vinha até a porta da sapataria, num toque leve do cabelo curto. Olhares, Uma ordem qualquer que ela repentinamente quase gritava lá para dentro, para as oficinas, sem muita convicção, talvez apenas para se fazer mais presente.
O das costeletas acendia mais um cigarro.
Movimentos, todos esses, que eram vigiados por Mercedes, a solteirona da casa próxima. Vigiava-os pela banda de janela, e logo mais estabanadamente largava-se por dentro de casa, cantarolante e arrastando as chinelas:
O das costeletas acendia mais um cigarro.
Movimentos, todos esses, que eram vigiados por Mercedes, a solteirona da casa próxima. Vigiava-os pela banda de janela, e logo mais estabanadamente largava-se por dentro de casa, cantarolante e arrastando as chinelas:
- Ai, ai, meu Deus!
E depois do chofer, fugaz, veio este de agora, como que definitivo e já aceito pela vizinhança, Alfredo. Faz às vezes de gerente na sapataria. Dá ordem aos empregados. Unhas polidas, poupado de esforços. Será decerto ainda o substituto de Seu Damião no negócio, Dona Leonor muito ciosa dele, de sua saúde, do seu bem-estar, o que por vexes o aborrece:
- Ora, Leonor!
Isso, quando Seu Damião não está, ainda que, por cautela, olhe para os lados. Enfarado. Há de explorá-la: terá exigências, requintes. São sempre vistos os dois em tarde de sábado vindo no mesmo Ônibus e na mesma poltrona, Descem na esquina e voltam a brigar surdamente, Então os olhos grandes de Dona Leonor parecem aflitos.
- Vem cá, rapaz.
Ele dá de ombros:
- Não, não! Depois.
E larga-se, Ela vem para casa trepada nos seus sapatos de salto alto, já pesada de passo, como se pisasse em ovos, A bolsa pendente do braço, a máscara de pó, os cabelos curtos de acaju, hoje mais amarelados. Cumprimenta grave, uma das vizinhas:
- Boa tarde.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
Mercedes, a solteirona da casa próxima, fecha devagar a banda de janela, E logo mais será noite, e com ela o isolamento e a decadência de Seu Damião, ao balanço lento de sua cadeira de vime na calçada. Urinou no quintal da sapataria, e as formigas miúdas, infinidade delas, vieram sugar o açúcar do líquido. Há de ter tomado também a sua pílula com regularidade. Põe água de molho no seu copo medicinal, que guarda na prateleira atrás das caixas de sapatos. E agora está ali na sua calçada, só, sozinho, sob o beirai baixo da casa. Dá repentinamente de ombros, ajeita os óculos e solta golpe brusco do pescoço:
- Ahn...ahn!
Possivelmente afugenta o morto e aceita a inutilidade de tudo. No mais, a rua é calma e mosquitos voejam em torno da lâmpada triste no poste da esquina, que ontem choveu.
Realmente Moreira não tem o reconhecimento merecido. Uma dica: você encontra a obra completa dele na Biblioteca de Humanas da Universidade Federal do Ceará (UFC). O fato dele não ser tão reconhecido me fascina e por isso ele é o objeto de estudo da minha pesquisa em História.
ResponderExcluirParabéns pelo refinado gosto literário.